Chafariz de Matosinhos: incógnitas...
No
centro da Praça de Matosinhos um belo monumento metálico oitocentista, jaz
esquecido de maiores cuidados. É um chafariz que a muito tempo não jorra água,
encimado por uma misteriosa estátua que recentemente tem suscitado discussões
variadas, instigando os pesquisadores a reescrever sua história, calcada em
novas pesquisas e reflexões.
Tradicionalmente
é chamada “Deusa Ceres” em São João del-Rei/MG. Ora, em Valença/BA, há uma
estátua-chafariz absolutamente idêntica, fundida na mesma fôrma, igualmente
chamada Deusa Ceres.
Na
mitologia romana, Ceres era a Deusa da Agricultura, filha de Saturno e Cibele. Simbolizava
o amor maternal e dava força ao crescimento das plantas. Teve com seu irmão
Júpiter, uma filha chamada Prosérpina, que esposando Plutão, foi parar no
inferno. Uma das versões diz que no desespero, Ceres clamou a Júpiter pelo
retorno da filha, mas sendo impossível só lhe foi concedido estar com ela
durante uma quadra do ano, justo no inverno, quando então, Ceres recolhia seus poderes
e os campos de cultivo descansavam, sem plantio e sem colheita.
Alguns elementos históricos dessa estátua em São João
del-Rei estão a merecer maior esclarecimento:
- qual a sua data exata: 1887
como se tem dito? Onde está a comprovação?
- foi mesmo a Câmara Municipal que a encomendou? Onde está o documento? Qual seu valor financeiro?
Como chegou aqui?
- quais os detalhes de sua
saída de Matosinhos e depois seu retorno?
- ela é mesmo representativa
da deusa romana?
Não faz muito, Antônio Gaio Sobrinho em artigo contrariou a
origem direta de Turim, Itália, ao trazer a público a existência de uma pequena
inscrição “Val d’Osne”, referente à famosa fundição francesa.
Meu
trabalho de pesquisas sobre Matosinhos já estava pronto quando as discussões
começaram e chegaram até mim colaborações de pesquisas de Flávio Frigo e Francisco
José de Rezende Frazão, que muito contribuíram para as novas reflexões e
considerações sobre este monumento. As novidades puxaram novas consultas à
internet, ora apenas pinceladas, mas obrigando em futuro próximo a reescrever
toda a história deste monumento. Fica consignada minha gratidão à confiança
destes estudiosos de nossa história.
A arte da estátua francesa neoclássica, existente no Bairro
Matosinhos é devida a Mathurin Moreau (Dijon, 1822 - Paris, 1912), um artista
pleno, de traços acadêmicos, com muitas obras espalhadas no novo e velho mundo.
A estátua tem a inscrição da fundição Val d'Osne, onde trabalhava o artista
supracitado, na região metalúrgica do Alto Rio Marne, em Champagne-Ardenne, que
no período oitocentista celebrizou-se na fabricação de peças primorosas: Sociètè anonyme des hauts-fourneaux et
fonderies du Val d'Osne.
Elementos decorativos evocam o ambiente natural dos faunos
de cuja bocarra escancarada jorrava água: folhas paludícolas, juncos e uma
cobra devorando rã, possível símbolo agrário da renovação da vida. Ainda mais,
um elemento chama a atenção: uma flor, compatível com uma magnólia, símbolo da
femininidade, inspiração de delicadeza e beleza.
Mesmo em São João del-Rei uma outra peça da mesma fundição
pode ser vista: seca, sem jorrar água, um chafariz-lampião com quatro carrancas
de fauno, idênticas às de Matosinhos, enfeitam o centro do Largo do Carmo, em
pleno centro histórico.
Frazão me alertara que outras peças históricas existem em
São João del-Rei com semelhança estilística aos monumentos da Val d’Osne na
cidade, quais sejam, os dois lampiões que hoje ladeiam o jardim anexo à
Prefeitura Municipal, na Avenida Hermillo Alves.
Segundo seu comunicado pessoal foram para aí trazidos na
gestão do prefeito Milton Viegas, do Largo da Câmara e da Estalagem (Praça
Nossa Senhora de Fátima, Bairro Tijuco), este já em precário estado de conservação,
demandando enchimentos em madeira para recomposição.
O mesmo informante e estudioso supra, em sinal de amigável
confiança, afirmou-me, baseado em fotografia de época, que a estátua “de Ceres”
ou que outro nome tenha, esteve antes de 1915 no Largo do Rosário, bem onde,
até hoje se encontra o busto do exímio compositor musicista Padre José Maria
Xavier, aliás o primeiro da cidade, instalado justo nesse ano.
É sabido que a estátua de Matosinhos esteve também por certo
período fora do bairro, transferida para o Morro da Forca (Bairro Bonfim). Mas
não localizei a data de seu translado.
Peças literalmente idênticas à de Matosinhos estão no Rio de
Janeiro (Passeio Público, entre a Lapa e a Cinelândia) e em algumas cidades
espanholas, italianas e francesas, às vezes com quatro bacias de água.
Em alguns lugares fixou-se com o nome de Ceres (a exemplo de
Valença/BA),
noutros, como uma alegoria do verão, fazendo conjunto com outras estátuas
representando as demais estações. A estátua pode ser também
interpretada como figurativa de um jovem, ou seja, com características
masculinas. Na Espanha, de
iconografia idêntica à nossa é chamada “Segadora” em Montoro e Vegadeo, além
de Avilés (Astúrias), ressaltando o caráter feminino da estátua. Este nome é
uma referência ao seu arco de ceifar trigo (segadeira).
A elucidação concreta passará necessariamente pelo catálogo
de peças da fundição. Afinal, mesclando características femininas e masculinas,
segundo o ponto de vista, a estátua representa o quê de fato: a Deusa Ceres, o verão, uma segadora ou um jovem trabalhador rural, um rapaz camponês? As peças feitas
nesta fôrma eram vendidas com que nome pela Val d’Osne? Aguardando as respostas
a estas incógnitas, as pesquisas devem prosseguir.
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografias e montagens fotográficas: Iago C.S. Passarelli, 2012 e 2013.
*** Outras fontes sugeridas à
consulta na web:
GAIO SORBRINHO, Antônio. Seria mesmo a deusa Ceres? O Grande Matosinhos, n.98, maio/2012.